Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Há vários manuais do 10.º ano que, naturalmente, contêm poemas em redondilha de Camões. Todavia, existem diversos vilancetes que, nos referidos manuais, contêm a designação cantiga a encimá-los. Gostaria de saber a razão por que tal sucede: classificam-se como vilancetes, mas os manuais intitulam-nos "cantigas".

Muito obrigado!

Resposta:

No âmbito da poesia camoniana, encontramos poemas em medida velha, designação que engloba estruturas poéticas como a esparsa, as endechas, o vilancete ou a cantiga.  Estas composições de natureza tradicional são produzidas com duas medidas: a redondilha menor, designação que refere os poemas com versos de cinco sílabas métricas; a redondilha maior, termo que descreve os versos de sete sílabas métricas.

Quando se utilizam classificações como vilancete ou cantiga, está-se a ter em consideração o critério da estrutura poética (número de versos e estrofes). Assim, os vilancetes caracterizam-se por ter um mote de dois ou três versos e glosas de sete versos (normalmente). Por seu turno, as cantigas apresentam um mote de quatro ou cinco versos e glosas de oito, nove ou dez versos. Tendo em atenção estes critérios, o poema “Descalça vai para a fonte” é um vilancete, ao passo que o poema “Foi-se gastando a esperança” é uma cantiga.

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber se na frase «Só que agora quase não conversavam, era como se uma invisível cortina os separasse», retirada da obra O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, também podemos aceitar que existe uma metáfora?

Efetivamente, há uma comparação e penso que será só este recurso. Do meu ponto de vista, a expressão «era como» estabelece a comparação, que dá ênfase ao silêncio e ao afastamento que havia entre os dois seres («invisível cortina»).

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

Na frase em apreço, está presente uma comparação.

A metáfora e a comparação são dois recursos expressivos que assentam num processo de analogia entre duas realidades.

Os dois recursos distinguem-se, no entanto, pelo facto de a comparação construir uma analogia com base na aproximação sintática de dois termos, que, não raro, se relacionam por meio da conjunção como (ou similar) enquanto a metáfora constitui um processo de «substituição por denominação, na qual um termo designa outro termo figurado similar»1.

Assim sendo, na frase em análise, observamos que a situação de «não conversar» é associada sintaticamente à realidade «cortina invisível a separar», sendo esta relação explicitada pela conjunção como. Estamos, deste modo, perante um processo de construção de comparação, que aproxima uma realidade, a inexistência de diálogo, a uma imagem, a de uma cortina invisível. 

Disponha sempre!

 

1. Paul Ricoeur, como citado em E-dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia.

A pronúncia do termo latino <i>incipit</i>
A influência da ortoepia latina

A pronúncia do termo latino incipit dá matéria ao desafio desta semana, proposto pela professora Carla Marques (divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2, de 23/03/2025).

Pergunta:

Já vi o tema «meio-dia e meio» debatido noutros sítios, inclusive pelo Sr. José Neves Henriques e pela Sra. Carla Marques, mas não fiquei convencido com os argumentos usados.

Vou tentar expor a minha visão da melhor maneira.

Meio-dia designa uma hora específica: 12h00. A «hora 12» é feminino, o «meio-dia» é masculino; são sinónimos. Não é o único exemplo na língua portuguesa de uma palavra masculina composta por justaposição que designa algo feminino.

Eis outros exemplos: um amor-perfeito é uma planta/flor, um bate-boca é uma discussão, um ano-luz é uma distância, um pé-de-cabra é uma ferramenta. Pegando neste último, se se tiver uma quantidade de x,5 unidades (x objetos inteiros + metade de outro) o correto é dizer-se «um pé-de-cabra e meio» e não «um pé-de-cabra e meia [ferramenta]».

Existe concordância em género e a mesma verifica-se para termos femininos; «quatro sextas-feiras e meia» é correto, «quatro sextas-feiras e meio [dia]» é incorreto.

Ora, tendo em conta os exemplo anteriores, por que motivo dizer que «meio-dia e meio», quando se está a referir claramente a uma hora concreta + metade dessa própria hora (a hora 12 + 30 minutos, 12h30), é considerado gramaticalmente incorreto?

Não se criou uma exceção ao não se aceitar que meio está relacionado com o substantivo masculino «meio-dia», e se está a interpretar erradamente que alguém está a querer dizer “meio-dia e meio hora”? Não será este caso único onde o género implícito do objeto/conceito (neste caso, a hora) se sobrepõe ao género da palavra que o designa («o meio-dia»)?

Obrigado

Resposta:

Mantemos a posição de que a formulação correta é a forma «meio-dia e meia».

Antes de mais recordemos que os fenómenos de concordância ocorrem em função do género gramatical da palavra independentemente de ela designar uma realidade extralinguística com um género masculino ou feminino (o que só se aplicará com seres vivos, e mesmo assim nem todos). Deste modo, diremos «um papagaio simpático», fazendo a concordância no masculino, independentemente do seu género natural (neste caso, macho ou fêmea).

A relações de sinonímia, hiponímia, meronímia ou outras que a palavra mantenha com outras também não afeta concordância: diremos sempre «um amor-perfeito maravilhoso», independente de estarmos que pensar que estamos a referir uma planta ou uma flor.  

De igual modo, e pegando num dos exemplos apresentados pelo consulente, um «pé-de-cabra» é, de facto uma ferramenta, mas também poderá ser um instrumento. Todavia, não é esta relação de hiperónimo-hipónimo (classe-elemento) que vai determinar a concordância de meio na expressão «pé-de-cabra e meio». Esta concordância é determinada pelo elemento que está omitido, o qual não decidido individualmente por cada falante. Deste modo, em «pé-de-cabra e meio», a concordância de meio é feita com «pé-de-cabra», que é um nome masculino, sendo a expressão completa «pé-de-cabra e meio pé-de-cabra»1. É este facto que justifica o aparecimento do género masculino.

No caso da construção «meio-dia e meia», comecemos por recordar que «meio-dia» é um nome masculino que refere «a décima segunda hora, a que divide o dia em duas partes iguais»2. Repare-se que a palavra meio que segue este nome composto não é uma redução de «meio-dia». Trata-se, antes, de um adjetivo que incide s...

Pergunta:

Com o mesmo sentido de «Exceto isso», devemos escrever «Fora disso» ou «Fora isso»?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se do uso preposicional de fora, a que não se associa outra preposição, conforme se regista em vários dicionários, designadamente no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa:

«fora preposição antes de grupos nominais, pronomes ou frases infinitivas, indica: 1. exceção, restrição sinónimos exceto; menos; salvo Todos comparticipavam nas despesas, fora ele. Não via nada, fora as questões do trabalho. Não fazia nada, fora andar de um lado para o outro. 2. não inclusão sinónimos tirante Ele ganha bom dinheiro, fora as ajudas de custo