Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estou com dificuldades em analisar sintaticamente a frase «Fiz do recreio uma festa».

A minha primeira intuição foi considerar o constituinte «uma festa» complemento direto e o constituinte «do recreio» complemento oblíquo. Mas fazendo a substituição pronominal do complemento direto não me soa muito gramatical a frase «Fi-la do recreio».

Parece-me que aqui o verbo fazer se comporta como um verbo transitivo direto, no sentido de «Transformei o recreio numa festa». Neste caso «o recreio» seria complemento direto e «uma festa» seria predicativo do complemento direto. Substituindo o complemento direto pelo pronome, ficaria «Transformei-o numa festa», o que é perfeitamente gramatical.

O problema da primeira fase é que em termos de sentido ela é equivalente à segunda frase, mas as categorias sintáticas não me parecem encaixar bem.

Outro exemplo: «Fiz o João feliz». Aqui não me parece haver dúvidas: «o João» complemento direto e «feliz» predicativo do complemento direto («Fi-lo feliz»). Mas, retomando o primeiro exemplo, eu poderia dizer, com um significado semelhante: «Fiz do João uma pessoa feliz». E, com a estrutura do verbo fazer, o complemento direto passaria a ser «uma pessoa feliz» e «do João» complemento oblíquo.

Mas mais uma vez não me parece muito gramatical a construção: «Fi-la do João.»

Obrigado.

Resposta:

O constituinte «do recreio» é um complemento oblíquo do verbo fazer, que, neste caso particular, tem um comportamento transitivo-predicativo, estando a ser usado com o sentido de «transformar alguém ou algo em alguma coisa»1.

Enquanto verbo transitivo-predicativo, o verbo fazer pode ser construído com complemento direto e predicativo do complemento direto, como em (1):

(1) «A idade fez o António mais ponderado.»

Porém, este mesmo verbo pode também ser seguido de um complemento preposicional introduzido pela preposição de, como em (2):

(2) «A idade fez do António uma pessoa mais ponderada.»

Se consultarmos os dados do Corpus do Português, de Mark Davies, vemos que parece existir uma tendência para uma maior frequência de uso desta última construção, que, em termos semânticos, é equivalente à que se apresenta em (1). 

Em contexto escolar e considerando o quadro sintática tradicional, a estrutura apresentada em dois é problemática, pois, como se explica nesta resposta, gramáticas como a de Cunha e Cintra não preveem a construção de verbos transitivo-predicativos com complementos oblíquos. Existe referência apenas a verbos transitivo-predicativos construídos com complemento direto ou com complemento indireto2 (neste último caso, com o verbo chamar).  

Estamos, portanto, perante uma construção que não está prevista nas gramáticas escolares ou mais tradicionais. Não obstante, julgamos que poderemos considerar a possibilidade de o verbo

Pergunta:

Gostaria de saber se de facto estou a analisar de forma correta a seguinte frase:

«Este encontro entre o desejo de tornar Camões acessível a todos e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido, tem sido um desafio.»

Sujeito: «Este encontro entre o desejo de tornar Camões acessível a todos e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido.»

Predicado: «tem sido um desafio»

Predicativo do sujeito: «um desafio»

Agora, quanto ao sujeito, vejo um grupo nominal principal («Este encontro») e um complemento do nome encontro: «entre o desejo de tornar Camões acessível a todos e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido»

Continuando a análise em caixinhas dentro de caixinhas, este complemento do nome é constituído por dois grupos nominais, sendo o primeiro «o desejo de tornar Camões acessível a todos», e o segundo «e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido».

Deixarei para depois a análise deste último complemento que integra uma oração coordenada adversativa.

Para já interessa-me esclarecer o constituinte «entre o desejo de tornar Camões acessível a todos». É composto por um grupo nominal «o desejo» e por sua vez por outro complemento do nome «de tornar Camões acessível a todos» assegurado por uma oração subordinada completiva.

Gostaria de proceder à análise sintática independente desta oração completiva: «Camões» seria complemento direto do verbo tornar;«acessível a todos» seria predicativo do complemento direto «a todos», complemento do adjetivo acessível.

A minha dúvida é esta: é defensável a ideia de que «a todos» seja complemento indireto?. Exemplo: «Eu tornei Camões acessível a todos»/ «Eu tornei-lhes Camões acessível» (parece-me pouco gramatical).

Obrigado e bom trabalho.

Resposta:

Na frase em apreço, o constituinte «a todos» não desempenha a função de complemento indireto.

Considerando que, em (1), o verbo tornar está a ser usado como transitivo-predicativo, os constituintes que o acompanham têm, respetivamente, a função de complemento direto («Camões») e de predicativo do complemento direto («acessível a todos»):

(1) «[…] tornar Camões acessível a todos […]»

Neste caso, como bem afirma o consulente, o constituinte «a todos» é complemento do adjetivo acessível.

Neste caso, o verbo tornar é usado com um valor causativo estando o alvo da mudança provocada pelo agente expresso pelo complemento do adjetivo. Neste sentido, este complemento poderá ser substituído por uma estrutura como «a eles»:

(2) «tornar Camões acessível a eles»

Não obstante, recordemos que em frases copulativas é possível a pronominalização do complemento do adjetivo por um pronome dativo:

(1) «Ele é fiel aos amigos.» = «Ele é-lhes fiel.»

Por proximidade a esta estrutura, é possível que se efetue o mesmo tipo de pronominalização, associando o pronome lhe ao verbo tornar, embora não seja uma opção corrente:

(2) «tornar-lhes Camões acessível»

Não obstante esta possibilidade, o constituinte «a todos / lhes» desempenha a função de complemento do adjetivo na estrutura em análise.

Relativamente à análise da frase, a análise que propõe é justa:

(3) «[Este encontro [entre o desejo [de tornar Camões acessível a todos]complementos do nome e a realidade [de um autor [reverenciado]modificador do nome restritivo, mas [pouco lido]modificador do nome restritivo,]

Pergunta:

As palavras impensado e impensável podem ser usadas como termos sinônimos e equivalentes em alguns contextos?

Ou sempre há diferenças bastante consideráveis entre as duas para suas respectivas utilizações gramaticais?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

As palavras impensado e impensável têm significações próximas, mas os registos de uso mais frequentes apontam para a sua utilização com valores ligeiramente diferenciados.

Impensável pode ser usado quer como adjetivo com o significado de «que não se pode pensar ou supor»1 ou como nome com o valor de «aquilo em que não se pensou ou em que não se pensa habitualmente»1.

Por seu turno, impensado é usado como adjetivo com o significado de «não pensado; irrefletido, não calculado; Imprevisto»1.

Uma busca no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra que impensado tem menor frequência de uso e surge muitas vezes usado como nome, como em (1):

(1) «[…] o momento não pedia ato tão disparatado mas Sofia agia assim, surpreendia as pessoas, comportava o impensado, falava o inesperado […]» (Caio Fernando Abreu, Onde Andará Dulce Veiga?)

Nas frases seguintes, identificamos os valores que frequentemente surgem associados a cada uma das palavras no referido corpus. Assim, o adjetivo impensável aponta para uma realidade geral que descreve uma situação em que ninguém poderá supor algo:

(2) «Há um tempo, era impensável alguém do setor de serviços reivindicar a presidência de uma central como a CUT […]» (Leôncio Martins Rodrigues)

...

Pergunta:

Estou a terminar um doutoramento numa instituição e gostaria de saber se devo dizer que sou "doutoranda nessa instituição" ou "doutoranda dessa instituição".

Muito obrigada.

Resposta:

Ambas as preposições (em e de) poderão ser usadas uma vez que não se trata de uma expressão que tenha cristalizado no tempo. No entanto, uma pesquisa feita aos usos, com recurso ao motor de busca Google, aponta a tendência dos falantes para a opção pela preposição por: «doutorando pela instituição x».

Note-se, porém, que o recurso a cada uma das preposições poderá veicular um sentido ligeiramente distinto1. Assim, a preposição em aponta sobretudo para uma localização estática. Deste modo, afirmar-se que se é «doutoranda em Coimbra/ na Universidade de Coimbra» corresponde a assinalar o local geográfico ou a instituição material onde se prepara o grau académico

Por seu turno, a preposição de aponta a origem ou assinala uma relação de posse. Deste modo, descrever-se como «doutoranda de Coimbra / da Universidade de Coimbra» implica assinalar a instituição a que se pertence, aquela que conferirá o grau.

Finalmente, a construção «doutora por Coimbra / pela Universidade de Coimbra» é também possível e tem muitos registos de uso. Neste caso, a preposição por aponta sobretudo para a ação agentiva da instituição académica enquanto conferidora de grau.

Em conclusão, qualquer das preposições ─ em, de, por ─ poderá ser usada. No entanto, verificamos uma maior tradição no uso da preposição por.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo et al., Gramática d...

Pergunta:

Em português de Portugal é errado classificar uma palavra como substantivo em vez de nome?

Resposta:

Não é errado classificar uma palavra usando os termos substantivo ou nome. No entanto, o recurso ao termo substantivo poderá corresponder a uma opção que não está de acordo com o quadro gramatical escolar adotado em Portugal.

Assim, os termos substantivo e nome são, no contexto da análise gramatical, equivalentes, tendo ambos tradição de uso, a qual tem uma história mais longa no caso do termo substantivo. Deste modo, é correto recorrer tanto a um termo como a outro no quadro da classificação de palavras.

Não obstante, há determinados quadros gramaticais que adotam um dos termos como opção metodológica para evitar proliferação de terminologia. Esta opção está patente no Dicionário Terminológico, documento que regula a terminologia gramatical a usar em contexto escolar não universitário em Portugal. Aqui, adota-se a designação nome, pelo que, nas escolas, os professores e todos os materiais escolares (que estejam atualizados) recorrem a ele para classificar as palavras pertencentes a esta classe. Por esta razão, também os alunos deverão usar o mesmo termo em atividades de análise gramatical.

Disponha sempre!