Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
111K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Relativamente ao uso de «reduzir pela metade», «reduzir para a metade» ou «reduzir à metade», gostaria de saber qual destas formas é mais correta nestes dois exemplos:

(1) «Após o desconfinamento, embora os locais recreativos começassem a acolher os clientes, a lotação permitida estava reduzida à metade.»

(2) «Embora a sala de espera possuísse diversos assentos, a proximidade entre as fileiras da frente reduziam-nos para a metade.»

Não sei se as opções que usei são as mais corretas.

Podem esclarecer-me esta dúvida, por favor?

Muito obrigada!

Resposta:

O verbo reduzir, na sua estrutura original, deve reger a preposição a, quando usado como transitivo direto e indireto com o sentido de «tornar mais curto, tornar menor, resumir, abreviar»1.

Deste modo, as frases apresentadas deverão ter a seguinte forma:

(1) «Após o desconfinamento, embora os locais recreativos começassem a acolher os clientes, a lotação permitida estava reduzida a metade.»

(2) «Embora a sala de espera possuísse diversos assentos, a proximidade entre as fileiras da frente reduzia2-os a metade.»

Celso Luft adverte, todavia, que há registos de uso do verbo reduzir com a preposição em, como se verifica na frase:

(3) «Reduzir em menos centímetros.»

Não obstante, uma pesquisa efetuada no Corpus do Português mostra que há muitos registos de uso do verbo reduzir com a preposição para:

(4) «[…] aos dez minutos da segunda parte, já o Beira-Rio tinha reduzido para dois a três […]» (Manuel Alegre, Alma)

(5) «[…] cujo orçamento foi reduzido para os actuais 304 milhões de ecus 55 milhões de contos.» (Público)

Deste modo, ainda que os dicionários consultados não incluam a regência com a preposição para, pelo menos em contextos menos formais, esta opção parece ter já entrado nas opções disponíveis para construções com o verbo reduzir.

Disponha sempre!

 

1. Esta indicação está presente em todos os dicionários c...

Pergunta:

«Percebi nessa frase que a dignidade não está naquilo que temos, mas na forma como fazemos aquilo que nos cabe.»

Quais os valores aspetuais configurados pelas formas verbais presentes na frase?

Eu creio que serão perfetivo («percebi») e genérico (para as restantes formas verbais).

Todavia, há quem considere imperfetivo e eu não entendo por que razão pode ser imperfetivo.

Obrigada.

Resposta:

Com efeito, na frase em análise são veiculados os valores perfetivo e genérico.

O aspeto perfetivo permite apresentar a situação como um todo já concluído, ao passo que o aspeto imperfetivo a apresenta numa das suas fases de desenvolvimento, como se fosse vista de dentro, sem olhar ao todo. Assim, a situação enquadrada pela oração subordinante, introduzida pela forma verbal percebi é apresentada como uma situação passada já fechada, associada, deste modo, ao aspeto perfetivo.

No interior da frase, a oração subordinada (que encaixa duas orações coordenadas) também veicula um aspeto verbal. A situação aqui é apresentada como uma verdade que se mantém em todas as ocasiões, como se de uma máxima se tratasse, aspeto para o qual contribui o recurso ao presente do indicativo. Deste modo, as orações coordenadas «a dignidade não está naquilo que temos, mas na forma como fazemos aquilo que nos cabe» veiculam um aspeto genérico.

Disponha sempre!

Pergunta:

Devo felicitar-vos pelo excelente trabalho que têm vindo a fazer!

Tenho uma dúvida no que diz respeito ao complemento do nome referente ao nome retrato nos contextos seguintes:

1. O retrato da tua filha está perfeito.

2. O retrato que o artista elaborou está exposto na galeria.

Na frase 1, foi indicado que «da tua filha» seria um complemento do nome. Percebi a análise, visto que o nome retrato pode ser entendido como denotando uma representação visual ou gráfica e, ao retirar «da tua filha», o sentido referencial de retrato seria impreciso.

Contudo, na frase 2, a expressão «que o artista elaborou» foi considerada como modificador do nome restritivo. Sei que é uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva e sei que estas costumam ter a função sintática de modificador do nome restritivo. Todavia, o sentido referencial de retrato não ficaria impreciso se esta fosse retirada, dado que é um modificador? Se a frase fosse «O retrato da tua filha que o artista elaborou está exposto na galeria», entenderia muito melhor a análise... Que justificação pode ser dada para se considerar ambas as análises sintáticas corretas?

Posso inferir que, não importando o contexto, se aparecer uma oração subordinada adjetiva relativa, esta terá sempre, sem exceção, a função sintática de modificador do nome, mesmo que eu saiba que o nome possa exigir um complemento do nome (como alguns nomes deverbais: «A oferta da casa foi feita ao casal» vs. «A oferta que o casal recebeu foi uma casa»?

Obrigada pela vossa atenção!

Resposta:

Com efeito, nas frases em apreço, os constituintes sublinhados nas frases desempenham a função de complemento do nome (frase 1) e modificador do nome (frase 2):

(1) «O retrato da tua filha está perfeito.»

(2) «O retrato que o artista elaborou está exposto na galeria.»

No caso da frase (1), o constituinte «da tua filha» desempenha a função de complemento do nome porque completa o sentido do nome retrato, na medida em que este, sendo um nome pictórico (relativo à imagem), pede um argumento que indique quem (ou o quê) está representado no referido retrato.

No caso da frase (2), a oração subordinada adjetiva relativa não constitui um argumento do nome porque não informa sobre o conteúdo representado na imagem. Dá antes uma informação que, ao incidir sobre o nome retrato, restringe o seu significado. É essa a razão que explica a alteração de sentido que ocorre quando se retira a relativa da frase.

(2a) «O retrato está exposto na galeria.»

A relativa «que o artista elaborou» junta-se ao nome retrato e leva a que este passe a referir apenas um objeto que corresponde ao retrato feito pelo artista, assim excluindo todos os outros possíveis retratos. Por essa razão, o oração relativa é indispensável à frase para que ela mantenha o seu sentido.

Por fim, refira-se que, de uma forma geral, as orações relativas que se associam a um nome desempenham a função de modificador do nome (restritivo ou explicativo).

Agradecemos as gentis palavras.

Disponha sempre!

Pergunta:

Li num dicionário acerca da definição de antecedente o seguinte:

«termo a que se refere o pronome relativo

Esta definição está completa? Não se deveria incluir os pronomes pessoais?

Ex.: «Nos debates televisivos falou-se de muitos assuntos. Eles foram pertinentes para o meu conhecimento.

Obrigado.

Resposta:

No plano textual, a definição de antecedente é mais lata do que aqui se refere.

A noção de antecedente está relacionada com o conceito de «anáfora textual», que se integra nos processos de coesão textual. Um texto integra uma rede de relações semânticas, construída também com bases em processos anafóricos que constituem uma construção linguística por meio do qual um determinado grupo nominal faz depender a sua interpretação de um termo antecedente.

Este processo pode ser desenvolvido por meio de uma anáfora direta1, conceito que engloba os seguintes processos: anáfora pronominal, anáfora zero, anáfora nominal e anáfora adverbial. Todos eles envolvem a relação entre um grupo nominal (expresso ou não) e o seu antecedente.

A anáfora pronominal corresponderá à realidade que o consulente refere na sua questão. Este processo gramatical de construção da coesão é desenvolvido por meio de pronomes de vários tipos (pessoais, demonstrativos, possessivos, relativos), os quais estabelecem ligações coesivas com um termo antecedente, retomando o seu sentido.

Disponha sempre!

 

1. cf.  Lopes e Carapinha. Texto, coesão e coerência. Almedina, 2013.

Pergunta:

Na frase «Nas últimas férias, fiz a minha primeira viagem de avião», devo considerar «de avião» complemento do nome ou complemento oblíquo, uma vez que o verbo "fazer", neste contexto, é transitivo direto?

Resposta:

O constituinte «de avião» desempenha, na frase apresentada, a função de complemento do nome viagem.

A frase em questão tem a particularidade de incluir o uso de fazer como verbo leve. Considera-se verbo leve aquele que perdeu o seu sentido pleno, tendo sofrido um «esvaziamento semântico» e funcionando associado a um constituinte nominal1. Veja-se, a título de exemplo, um uso do verbo fazer como verbo leve associado ao nome intervenção:

(1) «Ele fez uma intervenção na reunião de professores.» (= «Ele interveio na reunião de professores.»)

Assim, «fazer uma intervenção» é uma construção equivalente a intervir.

No caso em apreço, «fazer uma viagem» é equivalente a viajar. Caso a frase incluísse este verbo pleno, teria uma forma similar à seguinte, na qual «de avião» é um argumento do verbo viajar, desempenhando a função de complemento oblíquo:

(2) «Nas últimas férias, viajei pela primeira vez de avião.»

No caso da frase aqui transcrita em (3), o constituinte «de avião» não é argumento do verbo fazer, como se constata pela agramaticalidade introduzida pela omissão do constituinte «a minha primeira viagem»:

(3) «Nas últimas férias, fiz a minha primeira viagem de avião.»

(3a) «*Nas últimas férias, fiz de avião.»

A agramaticalidade da frase (3a) está relacionada com o facto de o constituinte «de avião» ser um argumento do nome viagem, pelo que desempenha a função de complemento do nome.

Disponha sempre!

...